sábado, 7 de abril de 2012

Folhas Caídas, por Amanda D'Andrea Löwenhaupt


Nome: Amanda D'Andrea Löwenhaupt
Endereço: Pelotas - RS
Blog: Vivendo entre livros




Conforme os dias quentes de verão davam lugar ao agradável frio do outono, pensei que me tornaria capaz de abandonar o passado. Como estava enganada... Certos eventos se tornam divisores de águas em nossas vidas, separando o que éramos antes daquilo que nos tornamos ainda que contra nossa vontade.
Há muito tempo aprendi como esconder meus sentimentos, minha face tornou-se uma máscara impassível e ninguém poderia ver o que havia além dela. Ninguém além dele, é claro. Pode parecer um clichê: a psiquiatra fria e profissional que se apaixona por um de seus pacientes e se prova extremamente sentimental. Mas não foi assim que aconteceu. Nem mesmo agora posso dizer que sou especialmente sentimental, e tenho certeza de que ninguém foi capaz de perceber mudanças em meu comportamento porque elas não ocorreram. Não me tornei outra pessoa, nem mesmo revelei que já era por trás da máscara. Continuei tão afastada dos outros como sempre fui. Talvez por isso ninguém foi capaz de compreender como sua morte me afetou. A diferença estava no que era visto, não no que era mostrado.
Ele era capaz de enxergar além de todas as farsas, além das mentiras inocentes e das não tão inocentes que contava diariamente. Sob seu olhar sentia-me nua, incapaz de esconder até mesmo meus pensamentos mais obscuros. Era ele quem me avaliava, não o contrário.
Por vezes me peguei pensando em como a vida deveria ser devastadora para ele, que não era protegido pelas ilusões que permitem a vida diária. Por ser capaz de observar aquilo que outros preferiam ignorar, foi levado até a beira do abismo. E foi lá que o encontrei.
Pensando em retrospecto, qualquer relacionamento entre nós estava fadado ao fracasso. Eu era sua médica, e respeitava minha profissão demais para ignorar esse fato. Era uma relação platônica, baseada em nossas longas conversas sobre filosofia e sociologia, e em especial sobre o que ele havia feito. Mesmo esse relacionamento tinha todos os motivos para ser encerrado. Atrelar minha existência a alguém que não suportava mais o peso da vida foi uma das decisões mais tolas que já fiz.
Não acredito que tenha de fato atentado contra a própria vida, ao menos não naquele primeiro momento. Creio que só queria ser deixado em paz e pensou que uma ala psiquiátrica era um lugar tão bom quanto qualquer outro para organizar seus pensamentos. Talvez precise acreditar nisso, ou pensarei que tudo o que vivemos foi apenas sua tentativa de me usar para sair daquele local. Muitas semanas depois de nos conhecermos, contou-me que ficou desesperado por não saber como contar para o irmão que seu noivo era um mentiroso que só estava interessado no direito e na influência da família. Quando seu irmão não acreditou no que tinha a dizer e prosseguiu com o casamento apenas para passar por um doloroso divórcio alguns meses depois, não suportou a culpa e cortou um dos pulsos. Meses se passaram antes que me mostrasse a cicatriz e me contasse que sabia que não iria morrer. Era um corte horizontal, sem marcas de hesitação, não muito profundo. E foi ele quem chamou a ambulância.
É claro que só estou tentando racionalizar um comportamento que não teve nada de racional, mas é o único modo que tenho de compreender o que o levou a me abandonar. Por vezes me pergunto até que ponto ele entendia o que existia entre nós. Sei que viu sentimentos que tentei negar muito antes de me tornar capaz de os admitir, mas não sei o que pensava das relações humanas. Sendo capaz de ver além das mentiras e das atuações, não tinha muita fé em relacionamentos.
Era um homem bom, mas nem ao menos sabia disso. Fazia o bem sem esperar nem mesmo um sentimento de gratificação. Os outros o viam como um estranho, até mesmo um louco. E até certo ponto o era. Talvez todas as mentes tão brilhantes funcionem de um modo que chamamos de loucura. Era inteligente demais para seu próprio bem, capaz de fazer coisas que outros consideravam impossível.
Meus próprios pensamentos me parecem desordenados. O que me faz pensar que ele era bom? Seria tão tola ao ponto de acreditar que desvendar verdades que ficariam melhor permanecendo encobertas era um ato de bondade? De fato preveniu muitos crimes e salvou diversas pessoas da ruína em que transformariam suas próprias vidas, mas o fez porque não poderia evitar. Contar o que via era seu modo de manter um fiapo de sanidade, e quando se tornou incapaz de o fazer, tornou-se também incapaz de seguir vivendo.
Lembro-me perfeitamente do que aconteceu. Dois dias haviam se passado desde sua alta, o que me fez pensar que o hospital tivesse cometido um erro, que eu tivesse cometido um erro. Quando o vi pela última vez antes de ser liberado, não imaginava o que iria fazer, talvez porque diferente dele não era capaz de ver o que se ocultava da escuridão das almas alheias.
Só vi o que aconteceu porque como todas as pessoas ele tinha um pouco de maldade. Ele me ligou para garantir que estaria lá, para garantir que veria quando ele pulasse. Talvez quisesse explicar o que iria fazer, mas não soubesse como me dizer o que precisava ouvir. Suas últimas palavras foram: "Sinto muito."
Pela janela, posso ver as folhas caindo. Já estive no interior desses quartos, que agora vejo como celas, muitas vezes antes, mas é fascinante como nossa percepção pode mudar por causa de simples detalhes. A única diferença entre antes e agora é que já não posso mais sair.
Por falta de termo melhor, chamaram minha desilusão de F32.9. Episódio depressivo não classificado. Acho que é mais fácil para eles dar um código e um nome clínico para o que tenho. Assim não precisam admitir que meu problema é que já não há nada por trás da máscara, que minha alma se partiu em um milhão de pedaços e que não pode ser reparada, que meu coração se espatifou naquela rua e que o sangue que escorria para o esgoto era também o meu.
Pensei que talvez o outono fosse me devolver a frieza que ele me fez perder, mas estava enganada. Talvez o inverno seja capaz de congelar os fragmentos de minha alma, assim os juntarei para que formem algo parecido com meu antigo eu exterior, ainda que meu eu interior permaneça além de qualquer salvação.
Enquanto isso ficarei aqui, vendo as folhas caindo.
Vendo as folhas caindo como ele caiu.
Caiu da graça para se provar mortal.
Mortal como todas as pessoas ordinárias que não o compreendiam e pensavam que ele não era como elas.
Caiu e se tornou uma casca vazia atirada na rua.
Caiu e me transformou em uma casca vazia presa em uma cela.

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